As ideias do futebol brasileiro: ganhar, cuidar da sua caceta e (argh!) “estar do lado certo da história”
A demissão de Sylvinho no Corinthians serviu para mostrar que continuamos os mesmos
Sylvinho foi demitido do Corinthians. Como 99% da população boleira, fui dormir quando a queda era iminente e acordei com o fato consumado. Consumado e consumido por uma avalanche de opiniões sobre as ideias do futebol brasileiro, ou a falta delas. Pois vou contar para vocês quais são as ideias do futebol brasileiro.
Ganhar
Essa é a ideia central do futebol brasileiro: ganhar. Jogos, títulos, dinheiro.
O meio para chegar a esse fim é secundário. Jogando bonito. Jogando feio. Com garotos. Com um monte de “puta veia”. Com responsabilidade fiscal. Gastando os tubos. Com um técnico gringo. Com o eterno auxiliar. Com um medalhão brasileiro. Com duas linhas de quatro. Com quadradinho de oito. Tanto faz.
Tudo isso são detalhes que vão ajudar a contar a história. E, no Brasil, a história é contada por quem ganha.
A diferença está no tempo que um clube está disposto a esperar - ou tem condições de esperar - para ganhar.
Um clube com menos pressão pode esperar a vida inteira, especialmente se estiver ganhando com bons negócios na venda de jogadores. Um clube que está ficando muito para trás do rival precisa começar a ganhar já. Um clube como o Corinthians já entra em campo perdendo. “Porra, faz 10 segundos que o juiz apitou e ainda tá 0 a 0 ?!” Por isso…
Cuidar da sua caceta
Quem está na linha de tiro, antes de mais nada, vai defender o seu. Nem que para isso tenha de lançar uns corpos ao mar. É a lógica que rege a relação entre dirigentes e treinadores no Brasil.
Treinadores são contratados, prestigiados (adoro esse termo) e demitidos para ser escudo de cartola.
Um dirigente que contrata um técnico estrangeiro no Brasil, hoje, não o faz por convicção. Faz porque outros que fizeram se deram bem, porque a imprensa vai tomar aquele clube como alinhado às ideias mais modernas do futebol e ser mais paciente, porque a torcida vai achar no mínimo curioso ter um cara de fora. Ganha-se tempo, e, com sorte, até uns joguinhos e taças. Aí tudo vira convicção, planejamento, visão, missão e valores.
O dirigente que banca um técnico sob pressão, via de regra, está grudando no técnico um selo de responsável por aquela turbulência. Então, ele que se vire para resolver logo.
Se não resolver, demissão. O dirigente entrega a cabeça que os críticos e a torcida queriam, oferece aos insatisfeitos com a medida o argumento da falta de resultado. Lava as mãos e ganha o argumento de “tá, fiz o que todo mundo queria, agora preciso de um tempo para arrumar as coisas”.
A história de Sylvinho com o Corinthians seguiu exatamente esse roteiro.
Foi contratado com um carimbo de “vejam que diretoria moderna, está trazendo um técnico com formação na Uefa, está preocupada em elevar o nível do debate no futebol brasileiro”.
Foi prestigiado na linha de “Sylvinho, investimos pesado para trazer jogadores de alto nível, seguramos as críticas ao seu trabalho até o fim do ano, você teve tempo para treinar e seguir o planejamento, mas agora precisa dar resultado rápido”.
Foi demitido quando havia tão pouca gente defendendo Sylvinho, mas tão pouca, que qualquer erro dele já vinha sendo atribuído integralmente a quem o mantinha no cargo. Sylvinho tornou-se um “incapaz”.
“Estar do lado certo da história”
Ganhar é legal, ter razão é ótimo, mas você já experimentou falar que o importante é “estar do lado certo da história”? Nunca fiz, mas vejo tanta gente repetir essa frase escrota que a sensação deve ser ótima. E cabe em tudo, da discussão política ao futebol.
O melhor de tudo é que para “estar do lado certo da história” você nem precisa ter razão agora. Basta ter razão no futuro. Quando? Em qualquer momento que ocorrer um fato, por mais insignificante e breve que seja, que cole na sua tese. Enquanto o dia glorioso não chegar, vale passar por cima da realidade sem remorso.
Vi gente favorável à demissão de Sylvinho por causa dos resultados ignorar na análise o fato de ter sido no terceiro jogo do ano. Se a paciência estava tão curta, bom, que o tivessem demitido em dezembro.
Vi gente favorável à continuidade e a projetos de longo prazo ignorar que, em momento algum, Sylvinho entregou futebol e resultados condizentes com o elenco que tinha em mãos. (Não estou dizendo que elenco é uma maravilha, mas sim que Sylvinho entregou menos)
Admiro muito, sinceramente, aqueles que estudam com afinco as nuances táticas, modelos e sistemas de jogo, o planejamento de uma equipe, que fazem cursos de treinador ou de gestão esportiva para analisar o trabalho de um treinador ou de um dirigente. São conhecimentos que passavam batido pelas gerações anteriores.
Admiro mais ainda quem consegue conectar esse conhecimento a outros fatores muito mais inexatos do jogo. A paixão da torcida, a atuação da arbitragem, a cabeça dos jogadores, o acaso puro e simples… São poucos que conseguem fazer isso.
Para a maioria, o importante é defender as próprias ideias, a teoria do manual, a fotografia da prancheta. A ânsia em defender a própria tese é tal que, assim como em vários debates acadêmicos, a realidade se torna menos importante, quase um estorvo para ideias tão brilhante. Saudades do tempo em que todo mundo ria com a picardia que não existe mais do “o gol é um detalhe” do Parreira.
Tá, mas e o que eu achei da demissão?
Ninguém perguntou, mas também não vou fugir do tema. Quem demite o técnico no terceiro jogo é porque já cogitava essa a ideia a sério antes. Então, o Corinthians deveria ter demitido Sylvinho em dezembro. Mas, como não demitiu e como o DeLorean está fora de circulação, melhor corrigir o quanto antes, certo? Dois erros (não demitir em dezembro e mantê-lo por mais tempo) não fazem um acerto.