Sai da rede social e vai brincar um pouco na rua, Enzo
Defender que um Real Madrid x Barcelona mobiliza mais que um Flamengo x Vasco não resiste a cinco minutos de realidade
Entrei no Twitter ontem pela manhã para ler sobre Fórmula 1 e encontrei uma discussão bizarra. A polêmica era qual clássico causaria mais mobilização entre os brasileiros no domingo: Flamengo x Vasco, pela semifinal do Campeonato Carioca, ou Real Madrid x Barcelona, por sei lá qual rodada do Campeonato Espanhol.
Primeiro pensei que era sacanagem - no sentido de zoeira. Aí notei que era sacanagem mesmo - no sentido de se discutir a sério um negócio desses. Depois fui ver que o estopim havia sido um comentário do PVC e tinha até enquete do Mauro Cézar a respeito. Pacote completo, falarei dele todo.
No fim, descobri que tem muito enzo (com minúscula, pois já merece viar verbete) precisando de mais futebol real e menos rede social para não passar vergonha. Vou explicar o porquê, já com a devida ressalva que não tem nada a ver com qualidade do jogo, do campeonato, do estádio ou do treinador, mas tem tudo a ver com o que o futebol é.
O primeiro erro é simplesmente factual
Este talvez seja o pior momento em anos para defender a ideia (insana a qualquer tempo) de que Barcelona x Real Madrid seja um clássico com mais potencial de mobilização do que qualquer grande clássico de um país com futebol minimamente decente (estamos falando do Brasil, mas seria o mesmo no Uruguai, na Argentina, na Turquia, na Colômbia ou na Grécia).
O Barcelona tenta se reerguer de uma das maiores crises da sua história. O Real Madrid está distante da máquina que colecionou troféus de Liga dos Campeões na década passada. Não há Messi x Cristiano Ronaldo; há Aubameyang x Vinícius Júnior (Benzema não jogou) na 29ª rodada de um campeonato que o Real ganhou junto com as compras da Black Friday, lá em novembro.
Mesmo na Espanha, o Barça-Madrid deste domingo não era grande coisa antes de a bola rolar. Tornou-se alguma coisa depois, com o 4 a 0 auri-rubro dentro do Bernabéu. Nada, repito, nada que ofusque um clássico tradicional de outro país.
O segundo erro é ignorar que clássicos são mais do que jogos de futebol
O maior erro da discussão não é superestimar um Barça-Madrid digno de campeonato estadual. É subestimar um clássico, mesmo que ele seja disputado em um indigno campeonato estadual.
Flamengo e Vasco estão, hoje, em universos diferentes.
O Flamengo é um dos principais times da América. Começa a temporada com a obrigação de vencer Brasileiro ou Libertadores, no mínimo a Copa do Brasil.
O Vasco é um time de Série B. Não apenas porque jogará essa divisão do Brasileiro, mas porque tem elenco, técnico e vida de Segunda Divisão. A esperança é o sugar daddy que negocia o investimento na SAF cruz-maltina.
Poderia ser o contrário, o Flamengo no buraco e o Vasco em alta. Ou os dois na merda. Pouco importa. Se Flamengo e Vasco entram em campo, há mais de um século de história. Há Zico. Há Roberto Dinamite. Há gol de falta do Petkovic. Há gol do Cocada. Há três gols do Edmundo. Há Romário. Há Rondinelli deus da Raça. Há o sarro a ser tirado do rival imediatamente após a bola parar de rolar - ou mesmo antes disso. Há tardes e noites de Maracanã gravadas eternamente na memória de cada torcedor que moldou seu caráter sentado em uma arquibancada ou correndo pela geral.
Falo de Flamengo x Vasco, pois é o clássico desonrado pela absurda comparação. Poderia ser Corinthians x Palmeiras ou o Grenal, para citar dois disputados nos últimos dias. Ou pode ser o Atletiba, que irá consumir minha durante a semana em duas suaves prestações de 90 minutos mais acréscimos.
Mas o mundo mudou, velhote de 42 anos
Não me diga! Sim, mudou. O futebol internacional é muito mais enraizado na nossa cultura hoje do que era há algumas décadas, pois muito mais acessível do que em qualquer outra época.
Sim, eu acho bizarro a molecada falar em “meu Chelsea”, “meu PSG”, “meu Arsenal” ou “meu West Ham”. Parece alguns amigos meus que passam o dia falando “minha Paolla Oliveira”. Pelo menos eles sabem que não têm chance alguma com a Paolla, enquanto os enzos não percebem que nenhum desses times amarra as sandálias da Paolla.
Não, eu não considero completa a experiência de torcedor sem você sentar a bunda na arquibancada (ou na cadeira) pra ver o seu time jogar ali, diante do seu nariz.
Mas (para usar uma palavra que a turma ama), reconheço o meu privilégio. Nasci e cresci em uma cidade com futebol forte. Meu time já foi campeão brasileiro (faz teeeempo) e, bem ou mal, disputa assiduamente as principais competições nacionais (menos assíduo do que deveria, é fato).
A falta de um futebol local forte fez times cariocas e paulistas conquistarem torcidas numerosas a quilômetros das suas sedes. Dominam o Norte, o Nordeste, o Centro-Oeste e, sim, meu Paraná também, a partir do interior. Entraram no coração de milhões de torcedores graças ao rádio e à TV. Torcedores que talvez nunca vejam seu amor distante no estádio.
O mesmo processo não só pode como já está acontecendo com o futebol internacional, graças à TV e à internet. Os enzos de hoje terão filhos que serão criados ouvindo desde pequeno as façanhas do Chelsea que o pai nunca viu de perto. Será tão natural para eles torcer pelo Chelsea do pai como é para minha filha torcer pelo Coritiba (que ela já viu no estádio e do qual é sócia) mesmo morando em São Paulo.
Porém, tenho sérias dúvidas do quanto esse espírito de “todo mundo só quer saber de time de fora” se cria além do cativeiro das redes sociais. Não estamos na Tailândia, na China, no Catar ou na Paquistão, países onde clubes europeus têm torcidas numerosas pela simples inexistência de futebol local competitivo.
Estamos no Brasil. Vai demorar várias vidas para o nosso futebol ser destruído a ponto de um clássico ordinário daqui valer menos no mundo real do que um clássico de qualquer outro lugar do planeta.
PVC, Mauro Cezar e o umbigo flamenguista
Li (mas não vi) o comentário do PVC que acendeu o pavio. Concordo quando ele diz que na rua o clássico que importava era o Flamengo x Vasco. Discordo quando ele diz que, para o mundo do futebol, o clássico que importava era Real Madrid x Barcelona. Real-Barça só importava para a fatia do mundo do futebol presa a ele por obrigação profissional. Para os demais, só a história salvava o clássico digno de terceira rodada da Taça Guanabara.
Segui o scroll e vi uma enquete do Mauro Cezar perguntando qual clássico valia mais (deu Flamengo x Vasco disparado). Me chamou atenção foi que as alternativas traziam o Vinícius Jr. como um fator capaz de fazer a audiência nacional dar mais bola para o clássico espanhol.
Esse ponto se conecta a outro fenômeno do futebol brasileiro: a certeza do flamenguista de que tudo gira em torno do Flamengo.
Para o torcedor comum, ok. Eu mesmo sou capaz de associar qualquer assunto (esportivo ou não) ao Coritiba. Quando o Flamengo vira o umbigo do jornalismo (e com o Corinthians acontece o mesmo), a situação fica curiosa.
Não descarto, claro, ser apenas um busca por engajamento e audiência. Considero justo, parte do jogo. Melhor essa hipótese que a de descolamento da realidade (que, friso, não é o caso do Mauro, que pôs a enquete claramente para mostrar que era descabido comparar o peso dos dois clássicos para o mundo real).
E a seleção brasileira?
O mesmo mundão que existe fora das redes sociais prefere não apenas um clássico brasileiro a um clássico estrangeiro (mesmo que seja um Barça-Madrid). Prefere também um jogo da seleção brasileira a um clássico importado. Mas é muita informação para nossos enzos. Vamos com calma. Um dia na rua de cada vez.